Com direção de Yara de Novaes e dramaturgia de Sílvia Gomez, monólogo estrelado por Andrea Beltrão chega a São Paulo após temporadas esgotadas no Rio de Janeiro, trazendo à cena a luta da advogada Mércia Albuquerque na defesa de presos políticos durante a ditadura
Espetáculo ganhará uma versão para o cinema com direção de Maurício Farias
Vídeos: de cena
“Lady Tempestade”, monólogo com Andrea Beltrão, que fez duas temporadas de sucesso de público e crítica no Rio, com seis indicações ao Prêmio APTR (atriz protagonista, direção, dramaturgia, espetáculo, produção não-musical e jovem talento) chega a São Paulo para uma temporada no Sesc Consolação, de 30 de maio a 06 de julho.
Passado, presente e futuro se embaralham em “Lady Tempestade”, espetáculo cuja dramaturgia parte dos diários da advogada pernambucana Mércia Albuquerque (1934-2003) para refletir sobre violências e injustiças no presente e no futuro, por meio dos relatos sobre sua atuação em defesa de centenas de presos/as políticos/as do Nordeste, principalmente entre 1973 e 1974, um dos períodos mais pesados da ditadura brasileira.
Na trama escrita por Sílvia Gomez e dirigida por Yara de Novaes, Andrea Beltrão interpreta A., mulher que recebe os diários de Mércia e fica impactada com o testemunho pela busca de justiça ou, ao menos, o paradeiro de desaparecidos, a partir das súplicas de mães desesperadas — repletas de violência e coragem.
Numa espécie de “diário dentro do diário”, A. encara o dilema de se envolver com aquela história, mas acaba mergulhando nela. Aos poucos, vai revelando uma personagem feminina importante, que começa a ser reconhecida a partir da publicação de suas memórias em livro, em 2023.
“Mércia dizia que era uma contadora de histórias de pessoas que reconstruíram a liberdade. Eu sou uma contadora de histórias. Eu acredito que contar histórias é uma maneira amorosa de pensarmos juntos no nosso passado, nosso presente e nosso futuro. Contar histórias amorosamente, para nunca esquecer. Para tentarmos responder às perguntas que nos fazemos aqui e agora”, explica Andrea.
A opção de levar essa história aos palcos veio, por coincidência, após seu monólogo “Antígona” — que esteve em cartaz em 2017 no Sesc Consolação –, montagem sobre o clássico de Sófocles em que a protagonista enfrenta a ordem do rei Creonte para deixar seu irmão, que lutou na guerra, insepulto. Andrea levou o prêmio APCA de melhor atriz pela peça, que se desdobrou também em livro e no filme “Antígona 442 a.C”. Agora, retoma o tema da luta por justiça, e pelo sepultamento digno de entes queridos, em “Lady Tempestade”.
Ao fazer paralelos com o tempo presente — com direito a um desabafo verídico, em áudio, de uma mãe que teve o filho assassinado pela polícia em 2022 —, A. envolve a plateia numa questão angustiante, mas provocadora: se não dá para “desver”, o que podemos fazer com isso?
Com a dúvida se transformando em parte do enredo, foi natural para Silvia Gomez adotar uma ideia dada por Yara: narrar a história como se fosse o diário de A. lendo o diário de Mércia. “A personagem da Andrea diz: queria fingir que não tinha recebido aquilo, mas não era mais possível. Eram coisas semi-desaparecidas e não são mais. Então, para que futuro vamos após ouvir as palavras de Mércia?”, indaga a autora.
Não à toa, uma frase é repetida algumas vezes no texto, após a leitura de trechos dramáticos do diário de Mércia: “Essas coisas acontecem, aconteceram, acontecerão”. Silvia desenvolve: “Alguém do presente, como nós, recebe uma convocação do passado. De repente, na escrita, o tempo verbal tornou-se arisco: às vezes no passado, às vezes no presente, às vezes no futuro. Como se a forma pedida pela obra nos lembrasse que o Brasil é reincidente no esquecimento de sua história, tantas vezes parecida com uma cena em looping de terror”.
O texto da peça, com dramaturgia de Sílvia Gomez, ganhou uma versão literária, pela Editora Cobogó. Além do texto integral da peça, a edição inclui uma apresentação da autora e textos de Yara de Novaes, Andrea Beltrão e Samarone Lima, jornalista e autor do livro “Zé – José Carlos Novais Da Mata Machado, Uma Reportagem”, para o qual pesquisou os documentos de Mércia Albuquerque e a entrevistou.
E “Lady Tempestade” terá uma versão para o cinema, com direção dirigido por Mauricio Farias e direção de arte de Luciane Nicolino. Baseado no espetáculo teatral dirigido por Yara de Novaes, com dramaturgia de Sílvia Gomez e estrelado por Andréa Beltrão, com participação de seu filho Chico Beltrão, traz para a tela os espaços físico/temporais dessa história, fazendo uma justaposição entre o teatro e o cinema, entre o palco e o apartamento onde vive a personagem A. As filmagens aconteceram em janeiro fevereiro de 2025.
Verônica Prates e Valencia Losada, que assinam a produção no teatro, também farão a do longa.
60 anos do golpe civil-militar
Yara e Andrea buscavam um texto para trabalharem juntas, sem tema pré-definido. A diretora de “Lady Tempestade” tinha participado como atriz, há pouco tempo, do elenco de “Zé”, filme de Rafael Conde sobre o militante mineiro José Carlos Novaes da Mata Machado, assassinado no DOI-CODI do Recife em 1973. Ali, soube da existência de Mércia, porque foi a advogada que conseguiu localizar o corpo da vítima, promover a exumação e a transferência para Belo Horizonte.
Ao pesquisar sobre a história de Mércia, Yara chegou a Roberto Monte, que dirige o Centro de Direitos Humanos e Memória Popular, no Rio Grande do Norte. Foi a ele que Octávio, marido da advogada, confiou os arquivos após a morte dela, em 2003. Além dos diários, há cartas e processos no acervo. Citado na peça como R., a pessoa que envia a encomenda para A., na vida real Monte de fato mandou os escritos da pernambucana para Yara e Andrea antes mesmo de publicá-los, em meados de 2023, no livro “Diários de Mércia Albuquerque: 1973-1974” (editora Potiguariana).
“Foi um susto”, conta Yara, ao lembrar da reação ao receber e ler o diário. Em seguida, elas tiveram acesso também a uma entrevista em áudio de Mércia para Samarone Lima, autor da reportagem biográfica “Zé: José Carlos Novaes da Mata Machado”
Diário e entrevista alimentam a narrativa que ganha o palco do Teatro Poeira no ano em que o golpe civil-militar completa seis décadas. Não faltam histórias impressionantes. Mércia foi presa 12 vezes — em uma delas, estava sozinha em casa com seu bebê, e mandou uma mensagem em uma garrafa, presa numa cordinha, para a vizinha de baixo, pedindo para ela cuidar da criança enquanto ela não fosse liberada pelos “gafanhotos” (uma das alcunhas que usava para chamar os militares).
A “virada da heroína” acontece, nas palavras de Silvia Gomez, quando Mércia vê o militante Gregório Bezerra ser torturado no meio da rua, em 1964. Recém-formada em Direito, ela chegou em casa e comunicou ao marido que iria defender aquele homem e quem mais precisasse. Mesmo tendo defendido mais de 500 pessoas e ser considerada a maior advogada nordestina de presos políticos durante a ditadura militar, Mércia ainda é pouco lembrada. “Isso chama a atenção pois, de modo geral, tantos homens são reverenciados com nome e sobrenome por seus feitos heroicos”, observa Silvia. “O sistema trabalha muito bem para certos nomes serem apagados.”
A partir dessa ideia de uma atuação heroica, a seu modo, e de uma frase de Mércia em que ela se compara à mãe — “minha mãe é bonança, eu não, sou tempestade” —, surgiu o apelido que deu nome ao espetáculo. “As pessoas que entrevistamos disseram que ela tinha um olhar muito forte, olhar de relâmpago”, conta Silvia, que escreveu o texto também inspirada por conversas com mulheres como a jornalista e prima de Mércia, Eliane Aquino, a juíza Andrea Pachá e a escritora e ensaísta Helena Vieira e por canções de artistas como Ceumar, Linn da Quebrada, Beyoncé, Kae Tempest. “Usar o nome Lady Tempestade foi uma maneira de trazer Mércia para o presente pois é aqui que ela nos confronta com o futuro.”
***
Andrea Beltrão é atriz e produtora. Sua carreira profissional começou nos anos 1980, em produções de teatro, cinema e TV. Após participações pontuais em novelas, sua primeira personagem fixa neste tipo de produção foi em “Corpo a corpo”, em 1984, e no ano seguinte ganhou popularidade vivendo a Zelda, da série “Armação ilimitada”. Fez ainda as novelas “Rainha da sucata” (1990), “Pedra sobre Pedra” (1992), “Mulheres de areia” (1993), “A viagem” (1994), “Um Lugar ao Sol” (2021), entre outras. Por 7 anos participou da série “A Grande Família” e por 4 protagonizou “Tapas & Beijos”, ao lado de Fernanda Torres. Participou de diversas produções no cinema, como os longas “Pequeno Dicionário Amoroso 1 e 2” (1996/2015), “A Partilha (2001) e “Sob Pressão” (2016). Mais recentemente viveu Hebe Camargo no filme “Hebe: A Estrela do Brasil” (2019), e está nos longas “Eu e Ela” (2022) e “Avenida Beira Mar” (2024). Ao lado de Marieta Severo, é sócia do Teatro Poeira, no Rio de Janeiro, onde encenou, antes de “Lady Tempestade”, a premiada peça “Antígona” (2017) e “O espectador”(2022). Em 2024, esteve no elenco de “No rancho fundo”, novela das 18h da TV Globo, pela qual recebeu o prêmio ‘Melhores do Ano’, na categoria Melhor Atriz.
Yara de Novaes é atriz, diretora e professora de teatro. Recebeu vários prêmios por suas atuações e direções, entre eles, APCA, Prêmio Shell, Questão de Crítica, APTR, Aplauso Brasil e Fundacen. Em 2005, formou o grupo 3 de Teatro com Débora Falabella e Gabriel Paiva. Dirigiu diversos espetáculos, como “Tio Vania”, de Anton Tchécov (com o Grupo Galpão); “Caminho para Meca”, de Athol Fugard (com Cleyde Yaconis); além de “A serpente”, de Nelson Rodrigues; “A Ira de Narciso”, de Sérgio Branco; “O Capote”, de Nicolai Gógol; e, mais recentemente, “Prima Facie”, de Suzie Miller, com Débora Falabella; “Mãos Trêmulas”, de Victor Nóvoa; e “Teoria King Kong”, de Virginie Despentes. Como atriz está em cartaz no longa “Malu”, de Pedro Freire, onde interpreta a protagonista, e recentemente dividiu o palco com Débora Falabella no espetáculo “Neste mundo louco, nesta noite brilhante”, de Silvia Gomez.
Indicação Prêmio Shell e APTR (direção por “Lady Tempestade” e “Prima Facie”), Indicação APCA (Teatro, direção Prima Facie | Cinema, atriz por “Malu”), melhor Atriz por “Malu”, no 45º Cairo International Film Festival e melhor atriz por “Malu”, no Festival do Rio. “Malu” ainda está indicado a uma vaga ao Prêmio PLATINO de Cinema Ibero-Americano 2025, na categoria Melhor Filme Ibero-Americano de Ficção.
Silvia Gomez é jornalista, dramaturga e roteirista, autora das peças teatrais “Mantenha fora do alcance do bebê” (prêmios APCA e Aplauso Brasil de dramaturgia, em 2015), “Neste mundo louco, nesta noite brilhante” (indicação ao Prêmio Shell, em 2019) e “A Árvore” (Editora Cobogó), entre outras. Suas peças foram traduzidas para o alemão, espanhol, francês, inglês, italiano, mandarim e sueco, tendo sido encenadas e lidas em países como Argentina, Bolívia, Colômbia, Escócia, Espanha, Inglaterra, México e Portugal. Desde 2017, dá aulas de dramaturgia e é atualmente mestranda em Artes Cênicas pela USP. Indicação Prêmio Shell e APTR (dramaturgia por “Lady Tempestade”).